Por que Gilles virou um mito? É uma pergunta cuja resposta requer um pouco de exercício literário e filosófico. É preciso entender que a figura de Gilles fala fundo na personalidade do ser humano e satisfaz à nossa necessidade de... heróis!
A diferença entre um herói e um anti-herói está apenas na forma com que cada um se despede da luta. O herói morre honradamente em combate, o anti-herói apenas encontra uma maneira não-fatal (e normalmente pouco honrada) de deixar de lutar e terminar sua vida fazendo coisas comuns, como plantar alfaces ou dirigir uma revenda de carros usados.
Quando víamos Gilles correndo e fazendo suas loucuras (e eu digo “víamos” porque eu nasci em 1973 e tive o privilégio de ter visto, por exemplo, o mítico GP do Canadá de 1981), tínhamos todos a plena consciência de que uma tragédia estava por se desenrolar. Gilles trazia a tragédia em si, nele se aplicava com perfeição o verso de Fernando Pessoa, segundo o qual o ser humano é um “cadáver adiado que procria”.
Mas a tragédia era necessária ao mito, porque sem ela Gilles seria só outro piloto mais famoso por seus erros do que por seus acertos, por seus vexames do que por seus êxitos. Entre Vittorio Brambilla e Gilles Villeneuve a diferença reside apenas na luz da mídia e no desfecho trágico: a diferença entre um Ulisses e um Dom Quixote, nestes nossos tempos em que se vive sem a companhia do estranho ou do sobrenatural, tornou-se muito menor.
Gilles era um mito vivo, um mito em processo de criação. Não por ser um extraordinário piloto, esse tipo de avaliação nunca é unânime, mas por ser um piloto fora de seu tempo. O que faz com que um combatente se torne quixotesco em vez de heróico não é a grandeza do inimigo, mas a inutilidade de sua luta. Gilles era um piloto à moda antiga em uma Fórmula 1 que se profissionalizava, que enfatizava cada vez mais a tecnologia em detrimento do talento e do “braço”.
O que torna Dom Quixote ridículo não é ele lutar contra moinhos de vento, por absurdo que isso possa parecer, é o fato de que sua luta resulte em uma queda do cavalo e um ferimento vexaminoso nas nádegas. Se ele morresse lutando contra o moinho ele não seria um anti-herói, seria um mártir dos “velhos tempos” que se sacrifica na resistência contra o novo, um Luís XVI tentando conservar a coroa sobre a cabeça em tempos de revolução.
Os moinhos de vento contra os quais Julio Villanueva se insurgia eram basicamente a tecnologia e o profissionalismo, exigências de um esporte que deixava de ser um circo de perícias e coragem para ser um espetáculo de massas. O próprio Enzo Ferrari certa vez disse que Gilles lhe lembrava Tazio Nuvolari – herói de uma época que já se perdia na neblina do tempo.
Com sua morte, Gilles cumpriu a biografia de um típico herói, que morre para marcar a mudança de uma era, após ter perdido o favor dos deuses de forma injusta ou inexplicável. Sua morte é um dos eventos (talvez O evento) que precipitaram o banimento do efeito-solo na Fórmula 1 e foi também, por muito tempo, a morte mais lembrada e mais emblemática da história do esporte.
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Aqui alguns comentários sobre o texto "Por Que Gilles Virou Mito?":
Thiago Mxyzptlk
" Villeneuve teve uma retaguarda financeira bem mais saudável, pra permiti-lo destruir muito mais carros.
Até vi em um livro uma vez, que hoje eu me arrependo muito de não ter comprado, uma comparação de pilotagem de Villeneuve e Piquet. Acho que a pista era Jarama, não lembro.
Na curva Piquet só tinha um pneu dianteiro sobre a zebra, o carro perde pouca velocidade e está totalmente sob controle, já Villeneuve tinha os dois pneus direitos após a zebra, o traseiro esquerdo sobre ela e o único que ainda estava na pista, e por pouco não sai tambem, era o dianteiro esquerdo, e o carro dando a impressão de estar no limite do descontrole.
Do lado tinha um texto explicando as diferenças de pilotagem, e as desvantagens da pilotagem de Villeneuve. A pilotagem dele não tinha nenhuma vantagem sobre a de Piquet. A velocidade dele vinha mesmo é da falta de apego a vida. (meio estranho escrever isso..)
Os fãs gostavam dele porque sempre vão gostar do piloto que se entrega mais do que os outros ao esporte. Na época de Prost X Senna, um pessoal indeciso entre os dois decidiu definitivamente por Senna quando Prost abriu mão de competir nos gps chuvosos de Inglaterra e Alemanha em 88, enquanto Senna arriscava tudo o que podia pra vencer ambas as corridas.
Fernando Faria ®
"Porque ele tinha um puto talento, e guiva com a faca nos dentes mesmo. Zandoort 79, Espanha 81, se não me engano, Canadá 81 e Dijon 79 só serviram para confirmar o piloto que era, fazia bobagens com certezz, mas era de uma "voracidade" nas pistas que deveria dar vontade de ver F1, mesmo pra quem não gostava do esporte, só pra ver Villeneuve guiando. Tenho parte de uma biografia dele, pena que vai apenas até o final de 81, onde algumas caracteríscas do piloto já o transformavam em um piloto fora de série, como o fato de sempre ao alinhar o carro, ele dava uma brecada forte e o carro acabava derrapando um pouco a frente da posição correta do grid, tendo que dar uma pequena ré para posicioná-lo corretamente. Para muitos parecia que ele sempre errava o lugar onde parar o carro, mas na verdade era para emborrachar, mesmo o minimo que seja, o local aonde as rodas tracionariam. Outra coisa que pode parecer bobagem para muitos, mas o autor da biografia, dizia que na hora da largada, o candense fixava seus olhos na luz vermelha e não na verde, ou seja ele esperava a luz vermelha apagar e não a verde acender para acelerar, e esses pouquissimos milesimos poderiam ser cruciais em uma corrida. Outro fator q ajudou Villeneuve a se tornar mito foi sua identificação com a Ferrari e Enzo, e isso aliado ao seu estilo de pilotagem, enloqueceu os "tifosis", mas isso é outra história, eheh. "
[SCCP] R Júnior
"Ótima análise, qualquer coisa que eu escrevesse sobre Gilles Villeneuve não expressaria o que voce escreveu nesse texto.
Para um piloto ser lembrado como mito, uma das condições é esta, correr nas pistas como quem quer sempre ultrapassar e como Gilles fez, morrendo se tornou mártir desse tipo de pilotagem."
X
Nós do VELOCIDADE MÁXIMA também temos a nossa opinião sobre a "beatificação" de Gilles:
Lucas Peterson
"Bem, Gilles tinha um estilo muito marcante "visualmente" embora tenha estatísticas pobres. É o avesso de Schumacher. E esses pilotos "visualmente impressionantes" sempre cativam mais a platéia. Não acontece só na F1, nas motos todos se lembram bem dos doidões Randy Mamola e Kevin Schwantz. Mesmo hoje em dia, há quem chore a ausência do mediano Juan Pablo Montoya, lembrando suas manobras espetaculares. O povo quer ver isso, o carro derrapando, pneus cantando, freadas bruscas no último segundo, uma pilotagem apaixonada... Gilles e esse tipo de piloto propiciavam isso. Ainda mais no caso de Gillles com a fanática - e passional - torcida italiana. "
Rodrigo Klango
"Porque ele fazia loucuras. Da mesma forma que Prost não cativou muitas pessoas, que gostavam de espetáculo, pelo seu estilo cerebral. É como o jogador driblador e um jogador cerebral. Muitas vezes, o cerebral produz mais para o time, mas o driblador é mais lembrado pelas jogadas de efeito que faz, mesmo produzindo pouco para o time. "
... e eu penso que:
"Se o Alesi tivesse morrido na época em que era piloto da Ferrari, seria um ídolo hoje em dia. Acho que isso explica um pouco da fama de Gilles. Sinceramente, se não tivessem morrido, provavelmente tanto o canadense quanto Ronnie Peterson (desculpa aí Lucas) seriam semi anônimos atualmente. Mais ou menos como acontece com Eddie Lawson, Randy Mamola, Kevin Shwantz entre outros na Moto GP."
Fernando Ringel
2 comentários:
Bom, Fernando, só discordo de uma parte:
"[...]Alesi seria mito[...]"
Alesi é um mito, e Gilles também. :)
Muito boa comparação entre Villeneuve e Quixote, embor eu discorde em parte em teoria narrativa.
Mesmo assim, o texto é muito bem fundamentado. A morte na Fórmula 1 é um fenômeno muito interessante, mas tão complexo que eu nunca escrevi uma linha sobre isso. Ainda.
Ah, e o Gilles não morreu uma temporada depois de o efeito solo ter sido banido?
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